Se a mitologia grega, o folclore japonês ou o polonês podem parecer escolhas um tanto seguras para a produção de um jogo, o que você diria se um estúdio propusesse ambientar suas criações numa versão alternativa da Andaluzia ou se inspirasse nas histórias contadas pelos iñupiaq, população originária do Alasca?
Pois no caso do primeiro, quem se dedicou a explorar a bela região espanhola foi o pessoal do The Game Kitchen, com o Metroidvania Blasphemous. Embora se passe na fictícia Cvstodia, o lugar foi fortemente inspirado na cultura hispânica, no catolicismo e na Andaluzia. No jogo acompanharemos O Penitente, único sobrevivente de uma ordem religiosa e que utiliza um Capirote, característico chapéu daquela região.
Com seu enredo falando de culpa, penitência e redenção, Manolo Suarez afirma que esses são temas comuns na cultura da Andaluzia. “Em todos os aspectos, desde sua narrativa e estética até sua mecânica e construção de mundo, Blasphemous está profundamente enraizado no folclore, história e tradições religiosas da Andaluzia,” diz. “É um jogo que convida os jogadores a entrar em um mundo que, embora fantástico e surreal, é um reflexo de uma cultura muito real e muito viva.”
Pois como observado por Suarez, essa tentativa por parte do estúdio espanhol de aproveitar seu conhecimento sobre a região que seus profissionais tão bem conhecem vai além do enredo. “Conforme você atravessa Cvstodia, não está apenas jogando um jogo; está embarcando em um tour virtual pela Andaluzia, experimentado suas maravilhas arquitetônicas, sua herança cultural e suas tradições religiosas,” garante o escritor, que ainda ressalta o “poder dos videogames como um meio de expressão cultural.”
Mesmo se valendo de algo tão comum nos videogames, que é a licença poética, a relação da região com a religião se faz presente nos cenários que vemos enquanto avançamos pela aventura. Misturando o cristianismo com o islamismo, Blasphemous aproveita a influência que o gótico e o barroco tiveram na arquitetura de cidades da região, especialmente em Sevilha.
Segundo o diretor Enrique Cabeza, outra fonte de inspiração para o desenvolvimento foram as pinturas de artistas espanhóis, como Francisco de Goya, Bartolomé Esteban Murillo, Jusepe de Ribera, Diego Velázquez e Francisco de Zurbarán. “Nós, como estúdio, fomos influenciados pela arte religiosa, mas aqui no sul da Espanha, toda essa arte religiosa é, na verdade, mais cultura popular do que religião,” contou. “Faz parte da nossa idiossincrasia; está dentro do nosso DNA cultural.”
Manolo Suarez afirma que hoje aquela região aposta no desenvolvimento da indústria de videogame e isso se deve a um fator importante: “[O progresso tecnológico na Andaluzia] é sobre usar os games como uma mídia para contar histórias, compartilhar nossa cultura e nos conectar com jogadores ao redor do mundo. É sobre criar jogos que não sejam apenas divertidos, mas também culturalmente significativos,” defendeu.
Apesar de concordar com essa defesa que os jogos possuem uma importância cultural, a analista de dados, Bruna Stall, ponderou: “a maioria das pessoas ainda vê os videogames como um simples passatempo, e isso é compreensível, considerando a quantidade de jogos disponíveis e como muitos deles são focados apenas na diversão,” disse. “Hoje em dia as pessoas estão um pouco mais cientes de que os videogames podem ser mais do que apenas diversão, mas ainda falta muito para isso se tornar uma ideia comum. Só quem joga ou tem amigos que jogam percebe a importância que os games podem ter — e às vezes nem nossos amigos entendem isso.”
O Alasca é, ainda hoje, uma das regiões mais remotas dos Estados Unidos. Quase todo coberto por gelo, o maior estado norte-americano possui uma temperatura média no inverno de −24 °C, com as mínimas podendo chegar aos −50 °C. Embora a estimativa seja de que os inupiat (plural de iñupiaq) chegaram àquela região por volta de 300 A.C., migrando de ilhas localizadas no Estreito de Bering, dadas as características do local, é natural que sua cultura não seja tão conhecida pelo resto do mundo.
Pois isso é o que mais chama a atenção em um projeto lançado em 2014 e que visava contar um pouco da história daquele povo. Conhecido como Never Alone, ou Kisima Inŋitchuŋa, que na língua inuit significa “Eu não estou sozinho”, o jogo nasceu de uma iniciativa do Cook Inlet Tribal Council (CITC), ONG que atende os nativos do Alasca e do resto do país.
Na época eles buscavam uma maneira de reforçar a imagem daquele povo e os videogames foram vistos como uma ótima oportunidade para permitir que pessoas de todo o planeta conhecessem a cultura iñupiaq, usando um jogo para contar histórias que esbarravam em uma barreira para se propagar.
“Essas histórias são geralmente passadas de geração para geração através das famílias,” disse Gloria O’Neill, presidente e CEO do CITC. “Foi interessante, porque tivemos que ter muitas conversas sobre a maneia mais respeitosa de pedir os direitos sobre essas histórias. Essa foi uma grande parte do desenvolvimento inclusivo, onde tivemos que ir e encontrar essas histórias.”
Então, ao ser procurado pelo pessoal do CITC, o diretor criativo da editora E-Line, Sean Vesce, ficou empolgado com a oportunidade. “[…] poder ir a uma comunidade, aprender sobre a cultura e então tentar infundir seus valores e mitologias em um jogo que seja divertido e interessante, bem como pensativo, foi algo que pareceu um desafio incrível para nós,” contou.
Após dezenas de viagens ao Alasca para conversar com os membros daquela comunidade, Vesce e sua equipe — que viviam em Seattle — ficaram encantados com a riqueza, beleza e profundidade da tradição narrativa dos iñupiaq, quando se deu conta de que aquilo nunca havia sido explorado em um jogo.
Graças a colaboração de 40 idosos nativos daquela região, do CITC e do roteiro escrito pelo poeta iñupiaq, Ishmael Hope, Never Alone foi produzido. Ele aproveitava o conto local Kunuuksaayuka e nos colocava na pele de uma menina chamada Nuna e de uma raposa-do-ártico que a acompanhava.
Funcionando com um jogo de plataforma com elementos de quebra-cabeça, além da bela direção artística, ele se destacava por parte da história ser narrada em inuit, o que certamente foi o primeiro contato de muita gente com a língua. O resultado foi o recebimento de diversos prêmios, com os principais elogios recaindo sobre a bela maneira como o jogo explorava uma cultura tão interessante e ensinava sem nunca se tornar maçante.
Pois parte deste sucesso pode ser explicado pela abordagem feita pelos desenvolvedores, como pode ser visto em um comentário feito pelo cofundador e presidente da E-Line, Alan Gershenfeld. “Não estávamos interessados em criar um documentário exato,” afirmou. “A palavra que usamos era ‘infusão’. Queríamos ter a alma, a essência. Queríamos ter os temas e valores e sentir uma maneira de trazê-los para o novo meio, mas sendo um pouco intencionais sobre como trazemos esses valores para uma nova cultura.”
E nesse processo, Gloria O’Neill foi muito importante. Para ela, era preciso tomar muito cuidado com a adoção do desenvolvimento inclusivo, garantindo que as pessoas corretas participassem da criação. Além disso, por ela mesma ser da comunidade, garante que entende as nuances daquele povo, assim como da cultura iñupiaq.
Portanto, mesmo com alguns títulos tendo realizado ótimos trabalhos ao aproveitar culturas em que o estúdio não estava diretamente inserido, o conhecimento nativo pode resultar em obras ainda mais bonitas e respeitosas. E será também sobre isso que falaremos na próxima e última parte desta série, quando os jogos brasileiros serão o foco.