O Brasil é um país reconhecido mundialmente pela riqueza da sua cultura e por isso, era de se esperar que mais jogos explorassem os nossos costumes, assim como o folclore e a mitologia dos povos originários. Porém, ainda parece haver um bloqueio a isso e algumas possíveis explicações podem ajudar a entendermos este cenário.

Segundo Flávia Gasi, “há uma resistência nossa, achar que tudo que é brasileiro é ruim.” Para ela, “falta uma sensação brasileira de ter um pouco mais de orgulho do que é feito aqui, porque a gente exporta os nossos artistas para o mundo inteiro e não consegue reter essas pessoas no Brasil, pela dificuldade que é fazer arte no Brasil,” reflete.

Além disso, a jornalista culpa a falta de incentivo do governo, pois “se você não tem ajuda governamental, suporte governamental de cultura […], você não vai ter proliferação de cultura.”

Já para a pesquisadora e professora dos cursos de Tecnologia em Jogos Digitais e Tecnologia em Produção Multimídia no Centro Universitário de São Paulo, Breatriz Blanco, os estúdios nacionais querem produzir títulos baseados na nossa cultura, mas ela sente que ainda há uma dificuldade desses títulos circularem fora do nosso circuito. “E os que acabam circulando mais, são jogos em que talvez essa questão da brasilidade não esteja tão aparente assim, por exemplo, o Unsighted,” sugeriu.

O jornalista Rique Sampaio seguiu pelo mesmo caminho. Segundo ele, existe a “dificuldade dessa indústria em conseguir se manter, com toda a falta de investimento externo, mas também a falta de investimento interno, porque no Brasil não existe essa cultura de investimento,” lamentou. “A gente depende muito de editais, de fomento e os poucos que dependem desse financiamento externo, ficam ali na corda bamba.”

Dandara

Dandara explora a cultura brasileira de forma única (Crédito: Divulgação/Long Hat House)

Contudo, isso não significa que não existam bons exemplos de jogos feitos por estúdios nacionais e que fizeram excelentes trabalhos em retratar a nossa cultura. Desses, talvez o principal destaque seja o Dandara, criação da Long Hat House. Lançado em 2018, ele foi inspirado em Dandara dos Palmares, escrava fugitiva que viveu no século XVII e desafiou o sistema colonial.

Mas assim como Grim Fandango ou Never Alone, aquele jogo não tentou fazer uma recriação exata de uma história real, no caso, daquela conhecida também por ser a mulher de Zumbi dos Palmares. Mesmo porque, inicialmente a ideia dos dois desenvolvedores, João Brant e Lucas Mattos, era apenas criar algo que funcionasse bem na tela sensível ao toque dos dispositivos mobile.

“Como o gameplay era baseado em batalha e conflitos, pensamos em adaptar um conflito brasileiro, no caso o de Palmares, tanto que passamos a chamar internamente o projeto de Projeto Dandara,” contaram. “[O projeto] sobreviveu à transição do enredo do jogo para algo mais onírico. Ele ainda traz toda sua carga simbólica muito forte de luta pela libertação.”

Pois esta carga simbólica citada pelos criadores é também um dos pontos centrais de Dandara. Em um ensaio feito por Rique Sampaio no canal Overloadr, ele dá sua interpretação para a mensagem passada pelo título da Long Hat House.

Nele o jornalista ressalta sobre como o jogo retrata lugares tipicamente brasileiros, com os cenários mostrando barracos, placas com nomes de ruas, o interior de um botequim ou os grafites em homenagem à Maria Raquel, artista conhecida por divulgar sua arte nas paredes de Belo Horizonte.

Contudo, Rique também aborda a subjetividade presente na trama de Dandara, com o jogo servindo como uma mensagem sobre um período nefasto da nossa história, o da ditadura militar.

Para Sampaio, se trata de “uma alegoria à luta contra qualquer forma de opressão, especialmente das minorias e dos artistas. Dandara representa uma força de manifestação contra um sistema totalitário, é ela que traz de volta a liberdade de pensamento e não há símbolo mais forte para isso do que uma figura histórica e sua importância para a população negra brasileira, que dedicou sua vida a lutar pela liberdade de um povo escravizado.”

Rique também falou sobre a evolução das produções brasileiras ao abordar temas mais sensíveis, algo que começou por volta de 2013 e a forma como as narrativas não precisam ser explicitas. “Os jogos não precisam entregar tudo de mão beijada ou mastigadinho,” defendeu. “Você tem a capacidade de interpretar, de ler, então isso é uma coisa muito bonita que os jogos brasileiros têm feito, conseguir embutir um pouco da nossa história, da nossa cultura, nesses pequenos elementos e deixar que as pessoas tirem suas próprias conclusões.”

Essa abordagem sutil a temas tão importantes para a sociedade feita em Dandara pode ser vista em um dos personagens que encontramos no jogo. Ele foi inspirado no quadro Abaporu, obra da artista Tarsila do Amaral e que ficou conhecida, entre outras coisas, pela sua dedicação a temas sociais.

Embora possa parecer uma escolha óbvia, afinal se trata de um dos quadros mais famosos feitos no Brasil, este não parece ter sido o único motivo. Tarsila esteve ligada à Revolução Constitucionalista e chegou a ficar presa por um mês, sob a acusação de ser comunista. Em um jogo que fala tanto sobre liberdade de ideias e repressão, ter uma obra daquela artista é emblemático.

Dandara

A obra de Tarsila do Amaral virou personagem em Dandara (Crédito: Divulgação/Long Hat House)

Mas Dandara não está sozinho nessa tentativa de espalhar um pouco da cultura brasileira através dos videogames. Títulos como Aritana e a Pena da Harpia (Duaik Entretenimento), A Lenda do Herói (Dumativa e Castro Brothers), Horizon Chase (Aquiris Game Studio), Mandinga – A Tale of Banzo (Uruca Game Studio) e 171 (Betagames Group) são alguns exemplos dessa louvável iniciativa.

Outro que merece ser citado é o Asleep, jogo de terror com uma alta carga psicológica e que foge do lugar-comum ao ser ambientado em Piripiri, no Piauí. Idealizado por Décio Oliveira, a intenção era justamente explorar a nostalgia de alguém que viveu nas ruas daquela cidade na década de 90.

Mesmo tendo se inspirado em jogos produzidos em outros países, como Silent Hill e Lone Survivor, Décio fez questão de explorar suas raízes e falou sobre a importância da mídia. “Acredito que videogame, em geral, é a ferramenta cultural mais poderosa que se tem na atualidade, mas poucos se dão conta disso,” declarou. “E acho que o nosso dever como desenvolvedor e produtor cultural é de, não só, deixar isso claro para os jogadores, mas também atrair pessoas que não jogam ou não entendem muito do potencial dos games. Felizmente, vejo que as coisas estão mudando e o número de produtores que fazem jogos com essa perspectiva está em ascensão.”

O terror pelas ruas do Piauí (Crédito: Divulgação/Black Hole Games)

Pois algo que poderia explicar essa baixa utilização dos jogos para a disseminação da nossa cultura pode estar na falta de repertório dos jovens — tanto jogadores, quanto criadores. Segundo Beatriz Blanco, em seus cursos ela tem notado como as gerações mais novas possuem uma certa resistência a gêneros não tão populares quanto os MOBA, FPS e TPS, o que pode acontecer também devido à falta de acesso aos clássicos.

“Existe também esse desafio, de criar bibliotecas públicas para os jogos, espaços onde as pessoas possam jogar, um espaço placentário para estudar,” sugeriu. “É estudo, porque os jovens não têm acesso a esses jogos antigos normalmente, e é importante para o repertório deles que os conheçam.”

Mas se mensurar quantos estúdios estão dedicados a utilizar os jogos como ferramenta de disseminação cultural não é algo simples, o que podemos ter é uma melhor visão do potencial do mercado brasileiro.

Recentemente o site GamesIndustry publicou um relatório com os dados mais recentes da indústria no nosso país e no infográfico abaixo você confere o tamanho que ela já alcançou — e como ainda há muito a evoluir.

Números mostram o tamanho e o potencial da indústria de games no Brasil (Crédito: Reprodução/Dori Prata/Freepik)

REFERÊNCIAS:

http://www.vidadegamer.com.br
Pai em tempo integral do pequeno Nicolas, enquanto se divide escrevendo para o Meio Bit Games e Vida de Gamer, tenta encontrar um tempinho para aproveitar algumas das suas paixões, os filmes, os quadrinhos, o futebol e os videogames. Acredita que um dia conseguirá jogar todos os games da sua coleção.