A maneira como God of War abordou a mitologia grega fascinou muitas pessoas, mas aquele não foi o único jogo lançado para o PlayStation 2 a conseguir isso. Em 2006 uma obra chamada Ōkami se propôs a explorar o belíssimo folclore japonês, com sua história se passando em uma versão ficcional do Antigo Japão. Nela assumíamos o papel de Amaterasu, a Deusa do Sol na religião xintoísta e representada no jogo na forma de um lobo branco.
Além da engenhosa mecânica conhecida como Pincel Celestial que era utilizada em batalhas ou para solucionar quebra-cabeças, a criação do Clover Studio encantava pelo seu estilo visual, inspirado numa técnica de pintura nascida na China e depois adotada pelos japoneses, conhecida como sumi-e.
Ao optar por tal direção artística, o estúdio conseguiu passar a sensação de estarmos vendo uma ilustração Ukiyo-e em movimento, fazendo com que suas pinturas aquareladas nos ajudassem a imergir no riquíssimo mundo da mitologia japonesa.
Segundo o xintoísmo, Amaterasu se recolheu em uma caverna quando uma de suas servas foi assassinada por Susano após uma bebedeira. Com as trevas recaindo sobre o mundo, o antigo Deus das Tempestades foi banido dos céus, passando a viver na Terra entre os mortais. Mas enquanto o beberrão se tornava um herói por salvar uma jovem das guarras de um poderoso monstro, a Deusa do Sol deixava seu retiro após ser enganada pelos outros deuses.
Em Ōkami essa história passou por algumas mudanças, mas sem nunca esconder a fonte que o gerou, com o jogo estando repleto de representações mais sutis de vários mitos japoneses. Isso acontece, por exemplo, quando Amaterasu se esgueira pelas entranhas do imperador, uma referência a história de Issun-bōshi, ou quando nos deparamos com o bizarro casal Cutter, que foi inspirado na lenda Shita-kiri Suzume, ou A pardal da língua cortada.
Não fosse a existência desse jogo, qual a probabilidade de boa parte dos ocidentais terem acesso a essas histórias? Sem a coragem do diretor Hideki Kamiya em abordar algo tão específico da cultura do seu país em um videogame, a chance dessas lendas e mitos serem passados adiante seria muito pequena, pelo menos para pessoas que estão a milhares de quilômetros de distância do Japão.
O que dizer então das palavras strzygi, płaczki, polednice e rusałki? Se você não faz ideia de a que elas se referem, tudo bem. A menos que tenha jogado The Witcher 3: Wild Hunt e procurado conhecer um pouco do folclore polonês, a chance de conhecer essas palavras é realmente muito pequena.
Baseado na série de livros Wiedźmin, de Andrzej Sapkowski, a série de jogos da CD Projekt Red é protagonizada por um caçador de monstros com habilidades sobre-humanas e por isso, a presença de seres assustadores é contante. Mas assim como o autor, os criadores de tais videogames buscaram inspiração no folclore daquela região da Europa para dar vida a aberrações que atormentam os moradores do lugar conhecido como O Continente.
Graças ao incentivo dado principalmente pelo terceiro jogo da franquia, hoje sabemos que as strzygi são uma espécie de vampiro; as płaczki são espíritos que atormentam o sono das crianças; polednice são assombrações que aparecerem no campo em dias mais quentes; ou rusałki podem ser comparadas a sereias.
Mesmo com Sapkowski tendo afirmado que os jogos não ajudaram a tornar o Wiedźmin popular no ocidente, será que hoje tantas pessoas conheceriam a cultura polonesa caso sua história ainda estivesse “presa” a alguns livros? Será que os monstros que aterrorizaram crianças eslavas e foram ensinados por pais e avôs, teriam força para alcançar um grande público se não tivéssemos a oportunidade de controlar aquele bruxo caçador?
Pois a maneira de compartilhar a cultura não precisa ser necessariamente de forma violenta/assustadora e um jogo lançado em 1998 nos mostrou isso. Idealizado pelo norte-americano Tim Schafer, Grim Fandango era “um conto sobre a vida após a morte” e fazia isso se espelhando numa tradição mexicana, o Dia de los Muertos.
Aquele Adventure se passava na Terra dos Mortos, nos colocando no controle de Manuel Calavera. Manny, como era conhecido, atuava como um agente de viagens responsável por ajudar as pessoas a fazerem a passagem para o descanso eterno. No jogo, dependendo da vida que tiveram, os falecidos terão direito a um pacote de viagens mais ou menos luxuoso, com ela podendo durar apenas quatro minutos (para os que tiverem a oportunidade de usar o trem expresso Número Nove), ou tortuosos quatro anos (para aqueles que seguirem a pé).
Grim Fandango conquistou milhões de admiradores com a sua mistura de humor (algo não tão comum nos videogames) com a maneira como abordou elementos da religião asteca e como se inspirava no estilo cinematográfico Filme noir, principalmente em clássicos como Casablanca, O Falcão Maltês e Sindicato de Ladrões.
Outro ponto que chamou a atenção do público foram seus personagens, que além de contarem com uma profundidade raramente vista na mídia quando o jogo foi lançado (1998). Eles eram representados como calacas, caveiras típicas do Dia de los Muertos e que, só muitos anos depois, foram utilizadas nas ótimas animações Festa no Céu e Viva: A Vida é uma Festa.
Com Grim Fandango, Schafer e o pessoal da LucasArts conseguiram várias premiações, mas acima de tudo, foram elogiados pela maneira respeitosa como trataram uma cultura que não era a deles. Sem se dispor a criar um “documentário” e recorrendo ao humor, a representação da cultura mexicana e da Mesoamérica feita pelo estúdio contribuiu para o jogo ser aclamado, mesmo com ele tendo fracassado comercialmente num primeiro momento.
E o grande mérito daquela obra foi utilizar um tema tão delicado quanto a morte e a crença popular de uma maneira engraçada, mas nunca sendo ofensiva. Sim, no jogo temos esqueletos “vivendo” normalmente, um protagonista que fez da morte alheia sua profissão e uma representação de Mictlān, o submundo asteca, que aquele povo nunca poderia imaginar.
Porém, em entrevista concedida em 2015, Tim Schafer admitiu que muito dessa abordagem aconteceu por acaso. “Aquilo não foi calculado,” contou. “Nós definitivamente estávamos tentando ser autênticos, mas também tinha muito a ver com a equipe. O folclore mexicano definitivamente é importante para isso, mas se [o jogo] tivesse acabado nas mesas de uma equipe diferente, ele provavelmente teria sido tratado de forma muito diferente.”
Se essa especulação se confirmaria, nunca saberemos. A certeza é que devido a sua belíssima Art Déco, a homenagem ao dia em que os mexicanos celebram os mortos e a inspiração nos filmes de detetive dos anos 1940 e 1950, Grim Fandango motivou muitas pessoas a conhecerem mais de uma cultura tão fascinante.
Pois a utilização dessas referências mostra como os videogames evoluíram ao longo dos anos. Se antes a mídia era vista como um brinquedo para crianças, hoje ela serve para espalhar a cultura pelo mundo, permitindo que desenvolvedores exponham os costumes para pessoas que de outra forma talvez nunca teriam contato com o “inconsciente coletivo” citado por Terry Eagleton e que eles tão bem conhecem.
Quem compartilha desta visão é o jornalista e designer, Rique Sampaio. “Videogame entra nesse caldeirão de cultura digital e que durante muito tempo foi visto como uma cultura fraca, uma cultura de baixa qualidade, perda de tempo,” explica. “Até porque, ele sempre foi muito atrelado a brinquedo, à diversão, entretenimento e a gente sabe que videogame pode ser mais do que isso.”
Ainda segundo Rique, esse cenário começou a mudar nos últimos anos, com a criação de jogos que buscaram ir além do puro entretenimento, nos fazendo pensar sobre as experiências que vivemos em seus mundos. Outro fator que contribuiu para isso, segundo ele, é a forma como as produções estão buscando respeitar as culturas e atores que fazem parte dela.
“Isso está sendo cada vez mais pensado de antemão pelos desenvolvedores,” acredita. “Eles estão cientes da evolução cultural e de todas as questões de gênero, questões de representatividade e questões sociais, para saber como devem fazer esse tipo de representação. A inserção, até onde podem ir, o que podem tocar, o que não podem. Quando precisam procurar um consultor, alguém para trazer uma perspectiva, se o jogo tiver essa proposta de carregar uma visão de uma pessoa, de determinada etnia, uma determinada perspectiva.”
No próximo capítulo desta série teremos dois estudos de casos, jogos que abordam, as suas maneiras, duas culturas completamente distintas, mas igualmente fascinantes.