Para muitas pessoas, os jogos eletrônicos são apenas uma forma de entretenimento, uma válvula de escape para os problemas do dia a dia, ou uma maneira de testar suas habilidades contra outros jogadores. Mas, e quando os games buscam ir além, nos levando para mundos que podem ser comuns a outros povos e nos incitando a conhecer outras culturas?
Pois isso nos leva a uma pergunta ainda mais importante: o que é cultura? Direito garantido a todo cidadão brasileiro pela constituição de 1988, para o filósofo Terry Eagleton, a cultura seria uma espécie de inconsciente coletivo, algo compartilhado entre os membros de um grupo, um conjunto de práticas sociais. Já segundo o dicionário Michaelis, cultura é um “conjunto de conhecimentos, costumes, crenças, padrões de comportamento, adquiridos e transmitidos socialmente, que caracterizam um grupo social.”
Ainda sobre definições, uma das mais conhecidas surgiu no século XIX, quando o antropólogo Edward Burnett Tylor publicou o livro Cultura Primitiva (1871). Nele o britânico defendia que a cultura engloba aquilo que é aprendido e compartilhado pelos membros de uma sociedade, evoluindo de um cenário mais simples para um mais complexo.
Para Tylor, essa evolução se dava naturalmente, com o acúmulo de conhecimento, mas nem todos concordavam com sua teoria. Embora o conceito tenha contribuído para o entendimento da diversidade cultural, os críticos o rechaçavam por considerá-lo simplista, pois sugeria que todas as sociedades se desenvolviam culturalmente da mesma maneira.
Mas se na época em que o antropólogo escreveu sua tese a difusão cultural tinha um alcance mais modesto, limitando-se ao contexto familiar ou meios que as pessoas frequentavam, isso mudaria a partir da primeira metade do século XX, com o surgimento de um fenômeno que ficaria conhecido como Indústria Cultural.
Esse conceito foi proposto pelos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer, dois dos principais nomes responsáveis pela criação da Escola de Frankfurt. Imersos em uma Alemanha devastada pela Segunda Guerra Mundial, eles queriam entender como a comunicação de massa, muito escorada na propaganda fascista, poderia ser usada para impor uma ideologia.
Desta forma, os teóricos propuseram na obra A Dialética do Esclarecimento (1947), que a cultura estava sendo transformada em mercadoria, para que assim a maior quantidade possível de pessoas consumisse as mesmas obras. Por sofrer forte influência do capitalismo, Adorno e Horkheimer — com o posterior apoio de Walter Benjamin — defendiam que a Indústria Cultural, ao utilizar o alcance do cinema, da TV e do rádio, fazia com que a arte perdesse sua essência questionadora.
“A Indústria Cultural tem por objetivo a massificação de certos preceitos, certos costumes, certas culturas que são da classe dominante e no videogame, isso é muito claro,” explica a jornalista Flávia Gasi, que também atua como escritora, professora e é doutora em comunicação e semiótica. “Então, quem ganha é o capital, é o sistema capitalista, que faz com que as pessoas acreditem que não existe cultura fora do capitalismo, ou que o capitalismo é quem está produzindo a cultura, enquanto o capitalismo está, na verdade, a abafando, diminuindo.”
Quem compartilha desta opinião é Beatriz Blanco, formada em Comunicação Social – Midialogia pela Unicamp —, ela é mestra em artes visuais, doutoranda, professora e coordenadora dos cursos de Tecnologia em Jogos Digitais e Tecnologia em Produção Multimídia no Centro Universitário de São Paulo.
“A ideia de indústria cultural é cheia de ambivalências, então, sim, você vai ter, principalmente no cenário cultural que a gente tem hoje, a ideia de ela ser mais democrática por causa da internet, mas se você olhar, está tudo concentrado em alguns grandes grupos de comunicação,” explicou.
Contudo, Blanco disse acreditar que mesmo com esse controle por parte da indústria de mídias em relação ao que consumimos, uma prática conhecida como Cultura de Fãs tem servido para atenuar tal imposição. “A cultura de pessoas que consomem conteúdo, que se engajam ativamente na produção de conteúdo sobre o que elas consomem, constantemente tensiona isso,” afirmou.
A aldeia global e o fim das barreiras
Mas se a tecnologia pode contribuir para que a cultura que chega a nós se torne “pasteurizada”, ela inegavelmente acelerou sua difusão e um dos primeiros a estudar isso foi Marshall McLuhan. Ao observar a popularização de filmes, programas de rádio e posteriormente de TV, ele cunhou o termo Aldeia Global, em seu livro A Galáxia de Gutenberg (1962). Segundo o filósofo canadense, os meios de comunicação seriam responsáveis por fazer com que as barreiras sociais, culturais e geográficas ruíssem, com os povos trocando costumes e conhecimentos de maneira mais rápida e fácil.
Segundo o intelectual e teórico da comunicação, a tecnologia permitiu que os povos passassem a conviver em um mesmo ambiente, por mais que houvesse uma distância física entre eles e os videogames tiveram um papel importante nessa disseminação cultural. Através dos jogos, pessoas em qualquer lugar do mundo poderiam consumir a cultura de vários povos ou épocas, cabendo aos criadores decidirem o que e como abordar.
Os videogames também facilitariam a troca de mensagens e informações entre os jogadores, principalmente quando as partidas online se popularizaram e os MMORPGs se tornaram uma febre global. Graças a jogos assim, as pessoas poderiam conversar sobre os mais variadores assuntos enquanto exploravam mundos virtuais ou partiam em missões empolgantes. De fato, a dupla jogos e internet fizeram com que culturas diferentes das nossas estivessem a um clique — ou um jogo — de distância.
Desta forma as pessoas ganharam acesso mais fácil a inúmeras culturas, levando à formação de um grande caldeirão cultural. Porém, isso também despertou o desejo em alguns de impor uma homogeneização cultural, com poucos grupos ou mesmo indivíduos tentando definir o que devemos ou não consumir.
Por isso, Gasi chamou a atenção para como alguns setores da sociedade tem influenciado o desenvolvimento de games e consequentemente, a maneira como a cultura armamentista tem se difundido pelo planeta.
“Toda obra de entretenimento ou de arte traduz, de certa forma, o que está acontecendo na sociedade, ou seja, traduz a cultura e o costume daquela sociedade,” explicou. “Não dá para esquecer que videogame é caro, é caro de ser feito, então ele está na mão de algumas pessoas, algumas empresas e alguns estados, dependendo, por exemplo, da ligação dos videogames com a indústria bélica e o exército norte-americano.”
Mesmo assim, Beatriz Blanco destaca o espaço disponível atualmente para que obras mais variadas surjam. “Se a gente olhar só para a indústria dos jogos Triple A, ela tende a seguir uma forma, pois está trabalhando com jogos muito, muito caros,” ponderou. “Mas se a gente olha para a indústria como um todo, existe uma possibilidade de fazer a disseminação cultural dos jogos independentes para nichos, usando grupos menores.”
O que Blanco também afirma ter percebido é o interesse das pessoas em consumir jogos com essa abordagem cultural. Para ela, a partir do momento em que é feito um trabalho de mediação, o público tende a consumir esses títulos e um bom exemplo disso é o Xbox Game Pass, adorado serviço de assinatura oferecido pela Microsoft. Graças ao seu catálogo, muitas pessoas tiveram contato com jogos que de outra forma ficariam restritos a um nicho, já que é difícil eles entrarem no “grande circuito” de lançamentos.
Sendo assim, existe um lado positivo nessa simbiose entre games e cultura? É possível absorver conhecimento consumindo jogos eletrônicos? Pois falaremos sobre essa e outras questões (com exemplos práticos) nos próximos capítulos dessa série de reportagens.
REFERÊNCIAS:
DE BARROS LARAIA, R. Cultura: Um Conceito Antropológico. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
EAGLETON, T. A Ideia de Cultura. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
MCLUHAN, M. A Galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo: Editora Nacional, Editora da USP, 1972.
MCQUAIL, D. Teoria da Comunicação de Massas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
VIEIRA, J. F. Jornalismo e Entretenimento. Florianópolis: Uniasselvi, 2021.